sábado, 5 de janeiro de 2013

Entidade Estranha?


Confira o texto: Entidade Estranha? Boa leitura.  



Rubem Alves* 

Imagino seu sorriso de incredulidade ao ler isto. “Como é possível que um homem como o Rubem Alves ainda acredite em demônios? Demônios são fantasias do imaginário religioso...”. Mas há coisas que podem ser consertadas. Há pessoas que viram o Outro que mora em voe de que ninguém gosta. Nem mesmo você.
O seu horror é triplo. Primeiro, o horror por aquilo que o Outro, com a sua cara, faz.
Segundo, o horror de que os outros o tenham visto daquele jeito monstruoso. Você conhecer um brinquedinho, não sei o nome em português. Em inglês é Jack-in –the-box. É um cubo metal com manivela. O cubo metálico é bonitinho por fora. Aí, a gente vai rodando a manivela e, de repente, a tampa se abre e de dentro do cubo se salta uma cabeça grotesca que dá um susto. Vendo o cubo fechado ninguém suspeitaria da cabeça assustadora que está dentro dele. Pois muitas pessoas são parecidas com o Jack-in –the-box. Você pode ser uma delas... dessas em que todo mundo fica com medo de rodar a manivela.
Terceiro, o simples horror de que more em você um hóspede desconhecido que está além do seu controle racional. Se conselhos racionais valessem alguma coisa, eu lhe daria vários e até poderia escrever um livro de autoajuda sobre o assunto. Mas quando o hóspede desconhecido entra em cena já é tarde demais para se fazer qualquer coisa. Até mesmo os anjos da guarda fogem...
De fato: os demônios são fantasias do imaginário religioso. As religiões os pintaram com seres repulsivos e feios, com cara de bode, chifres na cabeça, peludos, rabo, masculinos, genitais em forquilhas para penetrarem em dois orifícios ao mesmo tempo e especialistas em soltar ventilações sulfúricas malcheirosas por suas ventas e partes inferiores. Invisíveis, vagam pelos espaços vazios À procura de ninhos onde botar seus ovos.
Escolhida a vítima eles se aproximam e por meio de truques sedutores tentam entrar na casa onde desejam se aninhar. Se o dono da casa é bobo e acredita na sua conversa, eles entram, tomam posse do espaço e não saem pacificamente.
Você já deve ter ouvido falar de alguém que “ficou fora de si”. Se ele ficou fora de si, quem é ficou dentro dele? Só pode ser um outro que não ele. Então, naquele momento, o seu corpo não é posse sua. Está sob o controle de um Outro que faz coisas que Le jamais faria.
Nos tribunais se usa falar em “privações dos sentidos” para se referir a uma pessoa que não é responsável por aquilo que faz. É uma forma forense de se referir ao “ ficar fora de si” enquanto “ um outro fica dentro de si. Assim se o meu corpo cometeu um crime sob a condição de “ privação de sentidos”, isto é, enquanto estava sendo possuído por um estranho, eu não o cometi. Em tese, não sou culpado, não posso ser condenado.

*Rubem Alves é escrito, educador e psicanalista. Ele assina  na sessão Palavras da Revista PSIQUE.

Texto retirado da Revista Psique nº83