domingo, 26 de agosto de 2012

O poder de quem decifra por Renato Janine Ribeiro*




O conhecimento mais difícil, para o homem, é o conhecimento sobre o próprio homem. Diz Hobbes, no Leviatã, que se as verdades da Geometria e da Física afetassem nossos interesses pessoais, nós nos mataríamos por elas, como nos matamos disputando posições políticas. Imagine se brigássemos em tono da temperatura a que ferve a água. Não é o caso. Mas a questão, por exemplo, se o melhor na vida é a igualdade social ou a liberdade de iniciativa divide os homens. Hoje geralmente não nos matamos por ela, mas a discussão esquenta muito a respeito.

Édipo, personagem central de uma importante tragédia de Sófocles, soluciona essa questão. Lembremos que a cidade de Tebas está assolada por um monstro, a Esfinge, que detém os passantes: “Decifra-me ou te devoro”. Ninguém a decifra, ela devora multidões. Édipo, porém resolve o enigma que ela propõe. Este é: “Qual é o ser que de manhã tem quatro pernas, ao meio-dia duas e, à noite, três?” A resposta é o homem, que no início da vida engatinha, depois anda de pé e na velhice se apoia numa bengala.

Assim responde Édipo à crucial pergunta o que é o homem. Não nos contentemos com a letra de sua resposta. Podemos imaginar que ela seja mais completa, mais complexa. O que importa é que Édipo decifra o enigma. Isso é muito poder. A Esfinge matava o homem que não sabia o que é o homem. Ela se mata quando encontra um homem que sabe o que é o homem.
 
Mas a história prossegue. Édipo é premiado pelos tebanos, que o fazem rei e lhe dão como esposa Jocasta, a viúva do monarca anterior. Só que ninguém sabe que ele é filho dela com seu marido,Laios, que Édipo matou numa briga de estrada. Passam-se muitos anos, uma peste devasta a cidade. Édipo, que resolve enigmas, decide investigar a causa – que, dizem os oráculos, é um regicídio que ficou impugne, a morte de Laios. Mas a cada passo que dá o inquérito, as pessoas à sua volta lhe pedem que pare. Ele se recusa, até descobrir a solução horrível.

Moral da história: Édipo resolve dois enigmas: O primeiro salva a cidade e lhe dá a coroa. É o enigma sobre o ser humano. O segundo destrói  ele e sua família. É o enigma de sua origem, que também esclarece uma ação que parecia menor – uma morte em legítima defesa – mas em retrospecto se torna se torna assustadora. O que isso significa? Que o ser humano não pode solucionar tudo. Querer isso é mostrar hybris, a palavra grega que designa a soberba, a desmedida, o esquecimento de que somos apenas humanos, limitados. Em algum momento devemos parar. Mesmo que o preço disso seja Tebas continuar assolada pele peste – ou pela Esfinge. Conhecer poder ser pior do que sofrer, até porque conhecer pode fazer sofrer mais. Aquele que decifra, que parece ter tanto poder, talvez tenha menos do que pensa. Mexe com fogo. Este- como ensina o mito de Prometeu – confere um grande poder à humanidade. Faz-nos como deuses. Cozinhar é divino. Mas as chamas também nos queimam.


Aqui, a história de Édipo se bifurca. Para Freud, a chave está no segredo que chamei da origem, o filho que mata e desposa a mãe, o que seria o desejo reprimido de todo menino. Para Jean-Pierre Vernant, a chave está em querer saber demais. Édipo não sabia que Laios era seu pai, que Jocasta era a sua mãe. Mas seu desejo é querer ir acima do humano, querer saber e dominar tudo. Esse Édipo é muito moderno. Ele não cabe entre os gregos. Ele é o planejador. Vai ter continuidade com o príncipe, de Maquiavel. Não por acaso, ele decifra, devora, é decifrado e devorado. O Édipo ávido por resolver enigmas vai dar em nosso Édipo ganancioso de poder. Mas nada disso é fácil. Muitas de suas histórias terminam mal.

*Professor titular de ética e filosofia política na universidade de São Paulo (USP)


Depois da composição desse texto, deixo como sugestão as seguintes leituras: 
Édipo Rei - Sófocles
Édipo em Colono - Sófocles

domingo, 12 de agosto de 2012

Gestalt: o todo é mais que a soma de suas partes


Certas alegações parecem evocar automaticamente explicações místicas ou sobrenaturais. A alegação no título desta presente nota, de que o todo pode ser bem mais que apenas a soma de suas partes, ilustra bem o caso. Nossa educação e tradição matemáticas nos impedem de perceber como isso é possível sem que tenhamos de partir para as explicações místicas, pois costumamos considerar que, se um dado conjunto X é constituído pelos elementos W, Y e Z, podemos concluir apenas que X = W + Y + Z. Contudo, há situações em que a união dos elementos A e B não nos dá apenas A + B, e sim uma entidade nova, C, com propriedades particulares que não podem ser explicadas apenas pela soma das propriedades de A e B.

Chamamos isso de propriedades emergentes. Um exemplo do qual particularmente gosto para explicar as propriedades emergentes, pela sua simplicidade e elegância, é a água. Digamos que conhecemos todas as propriedades possivelmente dadas a conhecer do hidrogênio e do oxigênio, como elementos isolados. Sabemos seus espectros de absorção, suas configurações eletrônicas, seus raios, suas massas. Contudo, mesmo com todas as informações disponíveis, não somos capazes de prever como se comportará essa infindável maravilha da física e da química que é a água. Ou seja, o conhecimento das propriedades dos elementos hidrogênio e oxigênio não nos antecipa a totalidade das propriedades da água: seu ponto de fusão e de ebulição, sua natureza física, sua viscosidade, seu calor específico, seu calor de vaporização, sua coesão molecular, seu espectro de absorção, e muitas outras. O que estou alegando aqui é que a água é muito mais que a soma de dois hidrogênios com um oxigênio. Em outras palavras, que quando unimos dois hidrogênios a um oxigênio, formamos uma nova entidade com novas propriedades, propriedades essas que não podem ser explicadas ou mesmo previstas pela descrição das propriedades de seus elementos menores, constituintes.
Uma das construções teóricas que mais extensamente se apoderou do princípio de que o todo pode ser (e que geralmente deve ser) bem mais que a simples soma de suas partes foi o conceito de gestalt. Em alemão, gestalt significa algo como “forma” ou “aspecto”. O ponto central do conceito de gestalt, que nos interessará particularmente aqui, é que percebemos as entidades por suas propriedades enquanto “entidade” integral, e não pelas propriedades de suas partes isoladas. Imaginemos, por exemplo, a gestalt de um gato: todos nós somos capazes de identificar visualmente um gato, e fazemos isso nas mais diversas imagens que nos podem ser apresentadas: o gato pode estar de perfil, de frente, de lado, visto por cima; pode estar deitado, em pé, sentado, rolando, se espreguiçando, arqueado. A imagem pode ser diurna, noturna, à meia luz ou quase apagada; pode ser colorida, preto-e-branco, em tons de cinza, sépia, pode ser feita por granulados, pontilhada, ou tracejada ao estilo dos impressionistas. Ainda assim, somos capazes de identificar um gato se houver um na imagem. Fazemos isso não porque percebemos o rabo do gato, ou o aspecto da sua orelha, ou o desenho particular de seu focinho; fazemos isso porque percebemos o gato como um todo, percebemos sua gestalt. Essa, por sinal, é a grande dificuldade dos programadores de criar algoritmos de busca que sejam capazes, por exemplo, de perceber que uma foto (um arquivo digital) contém um tigre, mesmo que não haja nenhuma informação sobre isso no título do arquivo ou em sua descrição. Geralmente os programadores instruem o programa a procurar por aspectos distintivos de um tigre, seu formato, seus padrões listrados, sua cor. Porém, o programa costuma falhar miseravelmente se o tigre estiver numa pincelada impressionista, ou se estiver numa posição incomum, ou se for uma caricatura, como o Haroldo (ou Hobbes…) de Calvin. Um ser humano, por outro lado, identifica facilmente um tigre por sua gestalt, que não depende desses aspectos restritivos.

Logomarca da Word Wildlife Fund (www.wwf.org.br). As partes escuras da imagem não são identificáveis isoladamente. Percebemos o panda não por suas partes isoladas, mas pelo efeito total criado pelas áreas pretas e brancas.
O primeiro contato que tive com o conceito de gestalt foi ao ler os “Fundamentos de etologia”, de Konrad Lorenz. Aliás, em praticamente todos os seus livros, Lorenz é um ativo defensor de que o todo é mais que a soma das partes, e não se cansa de repetir isso. Há um livro excelente dele, escrito num campo de prisioneiros russo entre 1944 e 1948 (algumas páginas eram feitas de sacos de cimento cortados, e escritas com permanganato de potássio) e que, em minha opinião, é leitura obrigatória para os interessados em epistemologia e filosofia das ciências. Lorenz não lhe deu um título, mas os manuscritos foram publicados postumamente com o título “The natural science of the human species”. Nele, Lorenz descreve a importância, para os biólogos e cientistas em geral, dos critérios de gestalt estabelecidos por Christian von Ehrenfels: a primazia da entidade (o “todo”) sobre suas partes, a supersomação e a transponibilidade. Uma pequena digressão: o conceito de transponibilidade me traz à mente um exemplo interessante. normalmente, quando falamos de gestalt, pensamos em percepções visuais, mas podemos usar o conceito de gestalt para outras modalidades de percepção, como a música. Tomemos uma melodia em particular: ela pode ser tocada ao piano, num violão, assobiada, ou executada por um grupo ou orquestra; pode estar em ré menor, em lá menor ou em sol; pode ser mais lenta ou mais rápida… Mas ainda assim reconhecemos a melodia, percebemos sua gestalt.
Lorenz compara os seres vivos a gestalts, porém deixando bem claro que, apesar de muitos psicólogos do início do século XX usarem os termos gestalt eentidade como sinônimos, tal uso não é adequado. O que Lorenz defende é que os organismos vivos possuem propriedades únicas, que não podem ser explicadas apenas pela soma das propriedades de seus constituintes isolados. Como estudantes de biologia, estamos acostumados a esquartejar os organismos, tanto anatomicamente como fisiologicamente (e, alguns estudantes, literalmente…). Estudamos o sistema nervoso, em seguida o sistema circulatório, mais à frente o sistema digestivo… Numa célula, estudamos a membrana, em seguida as mitocôndrias, logo depois o núcleo. É claro que, de um ponto de vista prático, não poderia ser de outro jeito: temos que dividir o objeto de estudo para estudá-lo eficientemente. Porém, o que Lorenz quer nos lembrar é que, apesar de dividirmos os seres vivos em nossa metodologia de análise, temos que manter constantemente em foco que eles são entidades integrais, completas, e que devem ser analisadas, sempre que possível, de forma holística, em sua totalidade. Isso é mais importante ainda no caso de Lorenz, que estudava o comportamento animal: o comportamento só pode ser compreendido como uma totalidade, assim como o animal só pode ser compreendido como uma totalidade.
Isso não faz de Lorenz um idealista. Na verdade, ele era um materialista confesso, daí minha simpatia por ele. Costumo dizer, de brincadeira (mas não deixa de ser verdade), que eu sou a pessoa mais materialista que conheço. É claro que o comportamento é, em última análise, devido ao funcionamento atomístico dos neurônios e suas sinapses. Não há alma ou outro conceito místico para explicar o comportamento. Contudo, não é porque o comportamento deriva em última análise da atividade dos neurônios que estamos autorizados a dizer que o estudo dos neurônios pode nos levar à compreensão do comportamento de uma dada espécie.
Essa última frase deixou claro, para quem ainda não percebeu, que o intuito dessa breve nota é mais uma vez maldizer o reducionismo. Há, sim, ramos do conhecimento em que o reducionismo é adequado, e mesmo em certas áreas da biologia ele já exerceu importantes contribuições. Porém, sou da opinião que biólogos evolutivos, e por que não dizer biólogos em geral, devem ter sempre em mente que seus objetos de estudo, seja uma célula ou uma baleia, são “entidades biológicas”, e por essa razão devem ser estudados como um todo. A divisão do organismo para estudo é uma questão pragmática e didática, mas muitos se esquecem disso e tentam explicar de forma reducionista uma série de aspectos da biologia evolutiva. Compreender os organismos como totalidades é uma tarefa muito mais árdua, da qual o biólogo evolutivo não deve se esquivar.
março 13, 2010 por Gerardo Furtado

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Tudo que vicia começa com C



Tudo que vicia começa com C (Luiz Fernando Veríssimo)

Por alguma razão que ainda desconheço, minha mente foi tomada por uma ideia um tanto sinistra: vícios.
Refleti sobre todos os vícios que corrompem a humanidade. Pensei, pensei e,de repente, um insight: tudo que vicia começa com a letra C!
De drogas leves a pesadas, bebidas, comidas ou diversões, percebi que todo vício curiosamente iniciava com cê.
Inicialmente, lembrei do cigarro que causa mais dependência que muita droga pesada. Cigarro vicia e começa com a letra c. Depois, lembrei das drogas pesadas: cocaína, crack e maconha. Vale lembrar que maconha é apenas o apelido da cannabis sativa que também começa com cê.
Entre as bebidas super populares há a cachaça, a cerveja e o café. Os gaúchos até abrem mão do vício matinal do café mas não deixam de tomar seu chimarrão que também - adivinha - começa com a letra c.
Refletindo sobre este padrão, cheguei à resposta da questão que por anos atormentou minha vida: por que a Coca-Cola vicia e a Pepsi não? Tendo fórmulas e sabores praticamente idênticos, deveria haver alguma explicação para este fenômeno. Naquele dia, meu insight finalmente revelara a resposta. É que a Coca tem dois cês no nome enquanto a Pepsi não tem nenhum.
Impressionante, hein?
E o computador e o chocolate? Estes dispensam comentários. Os vícios alimentares conhecemos aos montes, principalmente daqueles alimentos carregados com sal e açúcar. Sal é cloreto de sódio. E o açúcar que vicia é aquele extraído da cana.
Algumas músicas também causam dependência. Recentemente, testemunhei a popularização de uma droga musical chamada "créeeeeeu". Ficou todo o mundo viciadinho, principalmente quando o ritmo atingia a velocidade. cinco.
Nesta altura, você pode estar pensando: sexo vicia e não começa com a letra C. Pois você está redondamente enganado. Sexo não tem esta qualidade porque denota simplesmente a conformação orgânica que permite distinguir o homem da mulher. O que vicia é o "ato sexual", e este é denominado coito.
Pois é. Coincidências ou não, tudo que vicia começa com cê. Mas atenção: nem tudo que começa com cê vicia. Se fosse assim, estaríamos salvos pois a humanidade seria viciada em Cultura.
 
http://catadoradeversos.blogspot.com.br/2012/06/tudo-que-vicia-comeca-com-c-luiz.html