Confira o texto: Entidade Estranha? Boa leitura.
Rubem Alves*
Imagino seu sorriso de incredulidade ao ler isto. “Como é
possível que um homem como o Rubem Alves ainda acredite em demônios? Demônios são
fantasias do imaginário religioso...”. Mas há coisas que podem ser consertadas.
Há pessoas que viram o Outro que mora em voe de que ninguém gosta. Nem mesmo
você.
O seu horror é triplo. Primeiro, o horror por aquilo que o
Outro, com a sua cara, faz.
Segundo, o horror de que os outros o tenham visto daquele
jeito monstruoso. Você conhecer um brinquedinho, não sei o nome em português.
Em inglês é Jack-in –the-box. É um
cubo metal com manivela. O cubo metálico é bonitinho por fora. Aí, a gente vai
rodando a manivela e, de repente, a tampa se abre e de dentro do cubo se salta
uma cabeça grotesca que dá um susto. Vendo o cubo fechado ninguém suspeitaria
da cabeça assustadora que está dentro dele. Pois muitas pessoas são parecidas
com o Jack-in –the-box. Você pode ser
uma delas... dessas em que todo mundo fica com medo de rodar a manivela.
Terceiro, o simples horror de que more em você um hóspede
desconhecido que está além do seu controle racional. Se conselhos racionais
valessem alguma coisa, eu lhe daria vários e até poderia escrever um livro de
autoajuda sobre o assunto. Mas quando o hóspede desconhecido entra em cena já é
tarde demais para se fazer qualquer coisa. Até mesmo os anjos da guarda
fogem...
De fato: os demônios são fantasias do imaginário religioso. As
religiões os pintaram com seres repulsivos e feios, com cara de bode, chifres
na cabeça, peludos, rabo, masculinos, genitais em forquilhas para penetrarem em
dois orifícios ao mesmo tempo e especialistas em soltar ventilações sulfúricas
malcheirosas por suas ventas e partes inferiores. Invisíveis, vagam pelos
espaços vazios À procura de ninhos onde botar seus ovos.
Escolhida a vítima eles se aproximam e por meio de truques
sedutores tentam entrar na casa onde desejam se aninhar. Se o dono da casa é
bobo e acredita na sua conversa, eles entram, tomam posse do espaço e não saem
pacificamente.
Você já deve ter ouvido falar de alguém que “ficou fora de si”.
Se ele ficou fora de si, quem é ficou dentro dele? Só pode ser um outro que não
ele. Então, naquele momento, o seu corpo não é posse sua. Está sob o controle
de um Outro que faz coisas que Le jamais faria.
Nos tribunais se usa falar em “privações dos sentidos” para
se referir a uma pessoa que não é responsável por aquilo que faz. É uma forma
forense de se referir ao “ ficar fora de si” enquanto “ um outro fica dentro de
si. Assim se o meu corpo cometeu um crime sob a condição de “ privação de
sentidos”, isto é, enquanto estava sendo possuído por um estranho, eu não o
cometi. Em tese, não sou culpado, não posso ser condenado.
*Rubem Alves é escrito, educador e psicanalista. Ele assina na sessão Palavras da Revista PSIQUE.
Texto retirado da Revista Psique nº83